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A ruptura da democracia no Brasil

Envolvida em escândalos de corrupção e acusada de falsificar as contas para ganhar a reeleição, a presidente brasileira Dilma Rousseff foi destituída do poder em 12 de maio, após uma votação retumbante na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. Os parlamentares de ambas as câmaras responderam assim aos milhões de brasileiros que, sufocados pela situação econômica calamitosa do país e indignados com o escândalo da Petrobras, saíram às ruas para pedir a destituição da sucessora de Lula. Esta última, que havia até tentado colocar o ex-presidente em seu governo para que ele pudesse escapar da justiça, lutou até o último minuto, denunciando um “golpe de Estado institucional” – um exemplo perfeito de um oximoro -, mas o Supremo Tribunal Federal validou todo o procedimentode impeachment.

Em poucas palavras, é assim que o leitor médio da imprensa francesa pode ver a crise política brasileira. No entanto, essa é uma maneira de descrever a crise que, ao eliminar elementos contextuais essenciais e simplificar ou distorcer outros, altera consideravelmente o significado político dos atuais processos de impeachment. Começando com as acusações feitas contra a presidente brasileira. Até o momento, Dilma (Partido dos Trabalhadores) não foi acusada de corrupção nos tribunais, mas essa ideia decorre de uma campanha maciça e de longa duração da imprensa brasileira. Além disso, sua suposta “ocultação de contas públicas” é uma prática contábil questionável, é verdade, mas comum, usada por todos os ex-presidentes e aceita até agora pelo Tribunal de Contas da União e pelo Parlamento, que agora mudaram de opinião.

A resposta parlamentar às demandas das “ruas” parece ser menos democrática do que aparenta à primeira vista, quando percebemos que o afastamento do Presidente é, acima de tudo, o resultado de um esforço conjunto: entre os apoiadores de um projeto que foi derrotado quatro vezes consecutivas nas urnas[1], de um lado, e os políticos corruptos que buscam escapar da justiça a todo custo, de outro. Por um lado, os “brasileiros” mencionados pela imprensa francesa pertencem a um segmento específico da população: são membros das classes média-alta e alta – 42% pertencem aos 5% mais ricos do país, sem surpresa, quase todos brancos, com idade média de quarenta e cinco anos, sendo que a grande maioria (79%) apoiou o candidato de oposição de direita nas eleições de 2014[2]. Por outro lado, no que diz respeito às figuras políticas que votaram contra a Presidente, as gravações de discussões entre lideranças do PMDB[3] veiculadas (tardiamente) pela mídia não deixam dúvidas de que muitas delas tinham motivos inconfessáveis para fazê-lo: a queda de Dilma era a única forma de “estancar a hemorragia”[4] causada pela operação Lava-Jato[5] na classe política. As primeiras medidas tomadas pelo presidente interino Michel Temer só servem para reforçar a hipótese de consulta antidemocrática: por um lado, ele nomeou um ministério composto por várias pessoas acusadas de corrupção e retirou a independência institucional da CGU, o órgão de controle criado durante o governo Lula; por outro, Temer está tentando implementar um programa de cortes drásticos nos direitos sociais, em total oposição àquele pelo qual Dilma Rousseff foi reeleita em 2014.

René Magritte certamente deve ter se revirado no túmulo quando o Le Monde afirmou no título de um editorial que “Isso não é um golpe de Estado”[6], confundindo seu próprio relato da crise brasileira com a realidade política do país e desprezando, assim, a compreensão que uma parte considerável da sociedade tem desse processo. Encontrar a definição mais adequada para essa ruptura na ordem democrática é certamente uma tarefa complexa e que levará tempo. No entanto, se quisermos fazer isso, em vez de fazer julgamentos precipitados e superficiais sobre o afastamento de Dilma, devemos primeiro tentar entender o que realmente aconteceu. A imprensa francesa – assim como a brasileira – deve seguir os ensinamentos de Hannah Arendt e não esquecer que as opiniões “podem divergir amplamente e permanecer legítimas desde que respeitem a verdade dos fatos”, mas que “a liberdade de opinião é uma farsa se a informação sobre os fatos não for garantida e se não forem os próprios fatos que forem objeto de debate”[7].

Uma compreensão mais justa da crise exige que nos aprofundemos na vida política desse país, historicamente marcada pela instabilidade e por acordos conservadores entre as elites econômicas e políticas. Requer também a compreensão do papel desempenhado pelos principais atores no processo de impeachment, a saber: o parlamento (eleito por um sistema eleitoral que destrói a representatividade), a imprensa (oligopolista e altamente homogênea, tendo apoiado a ditadura militar de 1964-85 e atuando de forma seletiva e antidemocrática), as classes média e alta (erroneamente chamadas pela mídia de “o povo na rua”), os empregadores (que investiram muito esforço para derrubar Dilma) e o judiciário (que, investido de uma aura heroica, não deu a mínima importância às garantias constitucionais).

Para ler o artigo inteiro (em francês), visite o site da Revue Mouvements.

Waldir Lisboa Rocha

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